Fonte: Brasil de Fato
"Quem tem fome, tem pressa". A frase é do sociólogo e idealizador da ONG Ação da Cidadania, Herbert de Souza, mais conhecido como Betinho, que foi um dos principais nomes engajados no combate à fome e à desigualdade no Brasil. Após a sua morte, em 1997, o legado de luta do ativista pelos direitos humanos ficou com o seu filho Daniel de Souza, presidente do conselho da instituição.
A ONG, referência nas campanhas de doação de alimentos no Brasil como "Natal Sem Fome", completou 28 anos no último sábado (28). Com a pandemia, o agravamento da crise econômica no Brasil e o aumento da insegurança alimentar, a Ação da Cidadania voltou a ter papel fundamental no cenário social do país. Em entrevista ao Brasil de Fato, Daniel de Souza conta como o crescimento da pobreza tem impactado no trabalho diário da ONG, fala sobre a campanha "Brasil Sem Fome", que está ocorrendo ao longo deste ano, o auxílio emergencial e também dos efeitos da crise no principal polo de atuação da Ação da Cidadania: o Rio de Janeiro.
"A verdade é que hoje a gente não precisa mais de números escritos ou de pesquisas, estamos vendo na rua o resultado de uma negligência e de uma total irresponsabilidade em relação ao combate à fome. O Rio de Janeiro, cidade maravilhosa, tambor do Brasil, está vivendo seu pior momento de miséria de fome", comenta.
Confira a entrevista completa:
Brasil de Fato: Um estudo publicado pelo Centro de Pesquisa em Macroeconomia das Desigualdades da Universidade de São Paulo (Made-USP) na última semana mostrou que o Brasil deve somar 61,1 milhões de pessoas vivendo na pobreza e 19,3 milhões na extrema pobreza. Como esses números alarmantes têm se materializado no trabalho da Ação da Cidadania?
Daniel de Souza: Esses números que estão cada vez piores e são extremamente trágicos se materializam no trabalho da Ação da Cidadania através dos comitês que estão em todo país. A Ação da Cidadania trabalha com essas lideranças nos 26 estados e no Distrito Federal e, só no Rio de Janeiro, tem mais de 300. São essas lideranças, esses comitês, que primeiro nos informam e vão nos dando um panorama de como a situação está lá na ponta. E são esses mesmos comitês que fazem o alimento chegar a quem precisa. Desde março do ano passado, temos distribuído alimentos em uma ação emergencial, não mais uma ação é pontual, como é o caso “Natal Sem Fome”. Em 2020, foram 10 mil toneladas que foram distribuídas, e, esse ano, a gente quer dobrar, chegando a 20 mil toneladas de alimentos para oito milhões de pessoas.
Para nós, independente de qualquer pesquisa, independente de qualquer relatório, independente de qualquer informação estatística, a gente tem um termômetro que fica lá na ponta e que nos passa como está situação. Fora que, por conta do trabalho que a gente tem feito os nossos celulares e WhatsApp não param de pedir alimentos. Esses pedidos só aumentaram e vão aumentar ainda mais.
Em fevereiro, um estudo publicado pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) apontou que mais de 745 mil pessoas passaram a viver na pobreza no estado do Rio após a pandemia. Como tem sido a atuação da Ação da Cidadania no Rio? A ONG precisou intensificar o trabalho de doação de alimentos em quais locais?
A atuação da Ação da Cidadania no Rio é a mais forte em todos os estados. A ONG foi criada aqui e é onde a gente tem o maior número de comitês.A gente tem atuado de uma forma bastante intensa. Este ano estamos distribuindo, toda sexta-feira, 10 toneladas de alimentos e vamos fazer isso ao longo do ano inteiro. Essa é uma forma de a gente ajudar, tentar reduzir um pouco a fome que percebemos nas ruas.A verdade é que hoje a gente não precisa mais de números escritos ou de pesquisas, estamos vendo na rua o resultado de uma negligência e de uma total irresponsabilidade em relação ao combate à fome.
A Ação da Cidadania fez em janeiro deste ano um ensaio fotográfico sobre a fome no Rio com o fotógrafo [João Roberto] Ripper, e, em breve, faremos uma exposição online para mostrar exatamente quem são os rostos, famílias, a realidade, os perfis e não apenas números. Números são pontas do iceberg, temos que realmente mostrar os rostos.
Em dezembro do ano passado, o governo federal pagou a última parcela do auxílio emergencial. Após quatro meses de interrupção, o benefício retorna com um valor médio de R$ 250. Na sua avaliação, essa medida terá um impacto significativo no combate à pobreza?
Esse auxílio emergencial era uma piada. Se a gente fizer um histórico rápido no ano passado, o governo queria dar R$ 200 de auxílio emergencial e quando o Congresso se mobilizou para aumentar, para não ficar feio pra eles, passaram para aqueles R$ 600. Sabemos o quanto que é importante você ter algum recurso no momento de extrema pobreza, extrema miséria e, o próprio governo, o ministro da Economia e, de certa forma, também o Congresso, não percebendo a emergência e a importância de fazer qualquer coisa por essa população, de resolver qualquer que seja o problema burocrático e administrativo, simplesmente deixa passar três meses no início desse ano sem o auxílio emergencial.
E quando recebe, recebe um valor que é absolutamente ridículo, um valor que realmente chega tarde e é insignificante. Vamos ver por quanto de tempo que eles vão tentar manter o benefício, porque, obviamente, esse auxílio emergencial tem muito mais uma função de ajudar nas pesquisas do que, propriamente, a intenção de ajudar a população.
No último sábado (24), a Ação da Cidadania completou 28 anos. O que mudou ao longo desses quase 30 anos de atuação?
A Ação da Cidadania passou por diversas fases, teve o lançamento em 1993, quando você tem todo Brasil mobilizado contra fome, num movimento nacional, porque naquela época tínhamos 32 milhões de pessoas abaixo da linha de pobreza.Ela continua basicamente de 1993 até 2003, quando entra o governo do Partido dos Trabalhadores (PT), trabalhando com o “Natal Sem Fome” no sentido de cobrar que o governo implementasse políticas públicas.Depois entra a segunda fase da Ação da Cidadania que é exatamente quando existe a vontade política para combater a fome por parte do governo. Inclusive, em 2007, a ONG deixa de fazer o “Natal Sem Fome” e começa a pensar outros projetos, começa repensar na sua própria existência, começa a planejar outras ações.Esse período vai de 2007 até 2017, quando, depois da crise política e econômica, a gente teve que trazer a campanha de volta, depois de ficar 10 anos sem fazer, tivemos que voltar com o “Natal Sem Fome” porque, de novo, os comitês pelos estados nos alertaram do aumento da fome e miséria.
Precisa cobrar de novo políticas públicas, porque a gente sabe que não importa o quanto que foi arrecadado, não importa o quanto foi distribuído, só as políticas públicas efetivamente conseguem erradicar fome. Vínhamos em um crescimento da miséria, de fome, até que chega 2020 e 2021. Temos uma tragédia que não é só na saúde, mas, principalmente, na questão da fome.
Em 2014, o Brasil tinha saído do Mapa da Fome e a nossa expectativa era ir para outras lutas, fazer outros combates e não voltar a lutar e enfrentar a fome e a miséria.
A Ação lançou a campanha "Brasil Sem Fome" para doar comida à população em situação de vulnerabilidade durante a pandemia. Como a campanha tem funcionado?
A campanha “Brasil Sem Fome” é a continuação dessa campanha emergencial que começou em março de 2020 junto com a pandemia. Toda semana foram distribuídas 150 toneladas em todo país, ou seja, uma campanha contínua e não uma campanha simbólica, como é o “Natal Sem Fome”, de outubro a dezembro. A campanha do ano passado se chamou “Ação Contra a Covid”, que emendou com “Natal Sem Fome” de 2020. Neste ano, ela apenas mudou de nome, mas continua arrecadado distribuindo alimentos sem parar. A gente provavelmente vai emendar o “Brasil Sem Fome” com o “Natal Sem Fome” esse ano. Quem quiser ajudar pode entrar no site www.brasilsemfome.org.br. Há várias formas de doar e vai ser muito importante que a sociedade como um todo seja solidária, entenda realmente que estamos no mesmo barco. Embora esse barco não tenha capitão, é um barco à deriva, mas ele tem passageiros e esses passageiros precisam de ajuda.
Edição: Mariana Pitasse