A fome retornou – mas o vírus foi só a gota d’água

Desde 2016, contrarreformas desmontam entidades e políticas de combate à miséria. Fim dos R$ 600 aprofundou tragédia. Solidariedade pode mitigá-la, mas saída requer enfrentar o casamento nefasto entre neoliberais e fascistas

Uma das grandes tragédias do Brasil neste momento é o aumento impressionante da miséria e da fome. A confluência de crise econômica mundial, pandemia, inflação alta e explosão do desemprego, está levando a uma escalada da fome. O Brasil tinha saído do chamado Mapa da Fome em 2014 com o amplo alcance do programa Bolsa Família, grande crescimento do emprego formal e em função das políticas integradas, como a garantia de financiamento para os pequenos agricultores. Com as políticas adotadas pelo golpe de 2016, todas no sentido da desmanche dos direitos, o país está voltando ao famigerado mapa, rapidamente. Um país entra no Mapa da Fome da ONU quando a fome regular atinge 5% ou mais de sua população. Há estimativas dos órgãos especializados de que o número de pessoas com fome crônica no Brasil já esteja próximo dos 10%.

Já em 2016 todos os indicadores de pobreza e concentração da riqueza pioraram rapidamente, apontando para uma situação, a qual a pandemia somente apressou e agravou. Toda a política do governo Bolsonaro conduz a esse resultado. Desde as políticas mais complexas – como a entrega de refinarias –, até as mais corriqueiras, como atrasar a ajuda aos famintos em meses, por pura crueldade. Apesar da renda emergencial ter acabado em dezembro, o governo começou a pagar o benefício de 2021, de valor miserável, somente em 06 de abril, quase quatro meses depois.

Mesmo com o rápido empobrecimento da população e de variantes mais letais da pandemia, o governo, impactado pela forte queda de popularidade, recriou o benefício apenas no dia 18 de março, através de três Medidas Provisórias. O benefício é ainda de valor inferior, variando de R$ 150 (para quem mora sozinho) a R$ 375 (para famílias chefiadas por mulheres). O pagamento da nova renda emergencial será realizado em quatro parcelas e teve início em 6 de abril. 

No ano passado a massa de rendimentos mensal do trabalho caiu 6%, passando de R$ 217,8 bilhões para R$ 204,9 bilhões, segundo o IBGE. São R$ 13 bilhões a menos no orçamento dos trabalhadores, todos os meses, e um menor volume de renda disponível para o consumo, o que dificulta ainda mais a retomada do crescimento econômico. Neste ano a massa salarial já teve em janeiro a segunda redução mensal consecutiva, de acordo com dados do IBGE.

Além da queda da massa salarial, a alta do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) no grupo alimentos, em 12 meses, foi de 15% – quase o triplo do índice geral.  Com base na cesta mais cara que, em abril, foi a de Florianópolis, o DIEESE estima que o salário mínimo necessário deveria ser equivalente a R$ 5.330,69, valor que corresponde a 4,85 vezes o piso nacional vigente, de R$ 1.100,00. O cálculo é feito levando em consideração uma família de quatro pessoas, com dois adultos e duas crianças.

O ano de 2020 chegou ao fim com 8,4 milhões de ocupados a menos do que em 2019, segundo a PNAD. Se cada um dos trabalhadores tiver 2 dependentes, já são 24 milhões de pessoas passando necessidade, ou prestes a passar. A queda de consumo destas pessoas, que necessariamente aconteceu, afeta outros setores, produzindo mais desemprego e miséria.

O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede Penssan), mostra que nos últimos meses do ano passado 19 milhões de brasileiros passaram fome e mais da metade dos domicílios no país enfrentou algum grau de insegurança alimentar. Segundo a pesquisa, 55,2% dos domicílios brasileiros (116,8 milhões de pessoas) conviveram com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020. Desse número, 9% deles enfrentaram insegurança alimentar grave, ou seja, passaram fome mesmo, nos três meses anteriores ao período de coleta, feita em dezembro de 2020.

A fome é um resultado quase que aritmético do conjunto de ataques contra a população a partir do golpe de 2016. São centenas de medidas (talvez acima de mil), todas contra os direitos e o povo. Além de medidas gerais, como a PEC do teto (EC 95, que congelou gastos primários do governo federal por 20 anos), vieram uma série de medidas menores, que elevou a fome no país. Por exemplo, em várias regiões do país, os governos federal, estaduais e municipais diminuíram ou eliminaram o fornecimento da alimentação escolar. Os governos foram interrompendo também o programa de apoio à aquisição de alimentos da agricultura familiar. Acabaram também os programas voltados ao semiárido do país, em especial em relação ao semiárido nordestino, como a construção de cisternas e outras iniciativas de apoio àquelas populações.

Com a Emenda 95 veio a base legal e política para esvaziar as políticas sociais e programas de transferência de renda. Equipamentos de segurança alimentar, como banco de alimentos, foram fechados. Assim que tomou posse, Bolsonaro extinguiu o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (Consea). O Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) não foi extinto, mas tem orçamento ridículo, de R$ 500 milhões que, assim mesmo, não foi executado completamente no ano passado.

A Ação da Cidadania, fundada pelo conhecido Betinho, está completando 28 anos. No ano passado a ONG arrecadou 10 toneladas de alimentos. Porém, segundo o seu presidente atual, a ajuda apresentou uma queda de 90% nos últimos meses, reflexo do fato de que a pobreza se espalhou na sociedade. A queda drástica nas contribuições está relacionada ao próprio empobrecimento dos trabalhadores. As pessoas foram perdendo o emprego, mesmo quando de ocupação informal. Empresas foram fechando, as pessoas foram morrendo, e os mortos são majoritariamente da classe trabalhadora.

Já na experiência passada no governo FHC tinha ficado evidente que o problema não será resolvido por ONGs e, sim, por políticas articuladas e financiadas pelo Estado. Ninguém pode ser contra a doação de alimentos, mesmo que fosse beneficiar a apenas uma pessoa. Mas é importante saber que doação de alimentos não irá resolver o problema. Esse aprendizado tivemos na própria campanha encabeçada pelo Betinho: apesar da grande repercussão da campanha, quando FHC concluiu o seu segundo governo, havia um número recorde de pessoas passando fome no país. O que a campanha do Betinho conseguia fazer de colherinha, a política neoliberal de FHC desfazia de retroescavadeira. É importante considerar que o problema da fome não é falta de alimentos. O Ministério da Agricultura anunciou agora uma a safra de mais de 272 milhões de toneladas de grãos. São 15,4 milhões de toneladas a mais que na safra 2019/2020.

A política de segurança alimentar que levou anos para ser parcialmente construída, os golpistas de 2016 destruíram rápida e obsessivamente. O espantoso retorno da fome no Brasil revela dois aspectos essenciais: 1) o fracasso das políticas neoliberais enquanto saída para a gravíssima crise econômica atual. Faz quarenta anos que a burguesia apresenta as mesmas políticas neoliberais para enfrentar os problemas econômicos, políticas que, basicamente, destroem a economia e agravam a pobreza; 2) outra coisa que fica evidente nesse processo é a crueldade das chamadas elites, que fazem questão de condenar uma parcela significativa da população brasileira ao martírio da fome, como se fosse uma maldição fascista.